quarta-feira, 23 de maio de 2012

Poemas de Fernando Pessoa



                                 Poemas de FERNANDO PESSOA


Eu amo tudo o que foi
Eu amo tudo o que foi, Tudo o que já não é, A dor que já me não dói, A antiga e errônea fé, O ontem que dor deixou, O que deixou alegria Só porque foi, e voou E hoje é já outro dia.

Tenho tanto sentimento
Tenho tanto sentimento Que é freqüente persuadir-me De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal. Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada. Qual porém é a verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar.

Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços E chama-me teu filho. Eu sou um rei que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços. Minha espada, pesada a braços lassos, Em mão viris e calmas entreguei; E meu cetro e coroa — eu os deixei Na antecâmara, feitos em pedaços Minha cota de malha, tão inútil, Minhas esporas de um tinir tão fútil, Deixei-as pela fria escadaria. Despi a realeza, corpo e alma, E regressei à noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia.

A minha vida é um barco abandonado
A minha vida é um barco abandonado Infiel, no ermo porto, ao seu destino. Por que não ergue ferro e segue o atino De navegar, casado com o seu fado ? Ah! falta quem o lance ao mar, e alado Torne seu vulto em velas; peregrino Frescor de afastamento, no divino Amplexo da manhã, puro e salgado. Morto corpo da ação sem vontade Que o viva, vulto estéril de viver, Boiando à tona inútil da saudade. Os limos esverdeiam tua quilha, O vento embala-te sem te mover, E é para além do mar a ansiada Ilha.

A morte chega cedo
A morte chega cedo, Pois breve é toda vida O instante é o arremedo De uma coisa perdida. O amor foi começado, O ideal não acabou, E quem tenha alcançado Não sabe o que alcançou. E tudo isto a morte Risca por não estar certo No caderno da sorte Que Deus deixou aberto.

Grandes mistérios habitam
Grandes mistérios habitam O limiar do meu ser, O limiar onde hesitam Grandes pássaros que fitam Meu transpor tardo de os ver. São aves cheias de abismo, Como nos sonhos as há. Hesito se sondo e cismo, E à minha alma é cataclismo O limiar onde está. Então desperto do sonho E sou alegre da luz, Inda que em dia tristonho; Porque o limiar é medonho E todo passo é uma cruz.


Cai chuva do céu cinzento
Cai chuva do céu cinzento Que não tem razão de ser. Até o meu pensamento Tem chuva nele a escorrer. Tenho uma grande tristeza Acrescentada à que sinto. Quero dizer-ma mas pesa O quanto comigo minto. Porque verdadeiramente Não sei se estou triste ou não. E a chuva cai levemente (Porque Verlaine consente) Dentro do meu coração.

Poemas ao Vento
Sopra o vento, sopra o vento, Sopra alto o vento lá fora; Mas também meu pensamento Tem um vento que o devora. Há uma íntima intenção Que tumultua em meu ser E faz do meu coração O que um vento quer varrer; Não sei se há ramos deitados Abaixo no temporal, Se pés do chão levantados Num sopro onde tudo é igual. Dos ramos que ali caíram Sei só que há mágoas e dores Destinadas a não ser Mais que um desfolhar de flores.

Teus olhos entristecem
Teus olhos entristecem. Nem ouves o que digo. Dormem, sonham, esquecem... Não me ouves, e prossigo. Digo o que já, de triste, Te disse tanta vez... Creio que nunca o ouviste De tão tua que és. Olhas-me de repente De um distante impreciso Com um olhar ausente. Começas um sorriso. Continuo a falar. Continuas ouvindo O que estás a pensar, Já quase não sorrindo. Até que neste ocioso Sumir da tarde fútil, Se esfolha silencioso O teu sorriso inútil.

Abismo
Olho o Tejo, e de tal arte Que me esquece olhar olhando, E súbito isto me bate De encontro ao devaneando — O que é sério, e correr? O que é está-lo eu a ver? Sinto de repente pouco, Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco — Mesmo o meu estar a pensar. Tudo — eu e o mundo em redor — Fica mais que exterior. Perde tudo o ser, ficar, E do pensar se me some. Fico sem poder ligar Ser, idéia, alma de nome A mim, à terra e aos céus... E súbito encontro Deus.

Flor que não dura



Flor que não dura Mais do que a sombra dum momento Tua frescura Persiste no meu pensamento. Não te perdi No que sou eu, Só nunca mais, ó flor, te vi Onde não sou senão a terra e o céu

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